terça-feira, 16 de outubro de 2018

A Saga de um incêndio


A Saga de um incêndio

Tereza Cristina Pinheiro Souza
 

Este é meu tio Manoel. Irmão da minha mãe. E esta é sua única fotografia tirada pouco tempo antes de falecer. Teve uma vida tão curta!...
 Nasceu no ano de 1919 e veio a falecer com quatorze anos de idade. Claro que não o conheci. Pelo menos, frente a frente. Mas criei com ele intensos laços afetivos porque repetidas vezes ouvi minha mãe contar uma história sobre a fatalidade que lhe roubou a vida.
Aos oito anos de idade, minha mãe fora estudar na cidade de Laranjeiras, em regime de internato na conceituada Escola Laranjeirense  que tinha como proprietária sua madrinha de batismo, a professora Zizinha Guimarães. Por ser sua afilhada, foi contemplada com uma bolsa de estudos. Recordo-me que ela se orgulhava dessa condição e era muito grata pela oportunidade da educação a que teve acesso. Todavia, intimamente lamentava a saudade que sentia de sua família. Pela dificuldade de locomoção da época, voltava para casa apenas nas duas férias: no meio e no fim do ano letivo. Dizia que para compensar a saudade, minha vó Cessa, sempre que podia, ia a Laranjeiras. Lá residiam parentes abastados de vovô Boanerges. Em uma dessas viagens, minha avó levou consigo tio Manuel, que era seis anos mais velho que minha mãe. Portanto, ainda tinha idade para ingressar nos estudos mais avançados que, no entanto, à época, Itabaiana não dispunha. Por ser um adolescente no frescor da vida e demonstrar uma personalidade dócil, o “tio Tranquilino Lobão” fez a sugestão para minha avó de criá-lo e educá-lo nos mesmos moldes que criou seus filhos. Alegava que seria uma maneira de ajudar ao irmão que sobrevivia junto a uma grande prole com uma fábrica de fogos. Mas minha avó se negou a conceder essa adoção, justificando o afeto que nutria por todos os seus filhos e argumentando que se não podia favorecer uma vida mais afortunada compensava com os cuidados de mãe. Mal sabia que exatamente quinze dias depois um acontecimento mais cruel o tiraria definitivamente de sua companhia.
Meu avô Boanerges teve uma vida difícil. Ainda menino, perdera seu pai, Samuel Pereira de Almeida. Casou-se com vinte e um anos de idade e criou dezesseis filhos, alternando sua fonte de renda entre a marcenaria e a fogueteiria. Exatamente entre as décadas de 20 e 30 do século passado, nos arredores de sua residência, funcionava uma fábrica de fogos que abastecia o mercado local, o suficiente para atender aos festejos do padroeiro Santo Antônio e às festas juninas.
Contava minha mãe que o mau uso de dinamite para a produção de 'foguetes de vara’, conjugado ao inapropriado consumo de cigarro por parte de trabalhadores, fez acontecer uma tragédia que deixou vários feridos, incluindo tio Sizino que, posteriormente, fora prefeito do município de Itabaiana, além de vitimar fatalmente o menino de 14 anos de idade, seu filho, Manoel de Almeida Pinheiro.
Cresci com minha mãe contando este episódio e chorando toda vez que o fazia apesar de ela ter apenas nove anos de idade quando da tragédia. Isso me deu a sensação de tê-lo conhecido. Contava que meu avô Boanerges se maldizia diariamente pela fábrica e, desmotivado do empreendimento, a partir de então, desistiu de  confeccionar fogos de uma vez por todas. Quanto à minha avó, comunicativa que era, ficou, no entanto, silenciosa por mais de um ano, reclusa em seu quarto e coberta de roupa preta, simbolizando o luto do seu coração. Todavia, depois dessa fase difícil, minha vó Cessa viveu por mais de 40 anos.
Recorrendo às lembranças de minha prima Neuma, dela obtive este depoimento:
- Segundo minha mãe, Cristina de Lafaiete Noronha,  que era também irmã do menino Manoel, vovó ficou muito queimada nessa tragédia e por um bom tempo acamada em cima de folhas de bananeira. A minha mãe chorava cada vez que tinha uma queimadura, por mais simples que fosse e sempre dizia: "ai, meu Deus, como deve ter sofrido meu irmão!” Melhorou um pouco seu sofrimento quando meu irmão que é médico anestesista,  Guilhermino Pinheiro Noronha, esclareceu-lhe que ele não sofreu muito pois a dor, por ter sido muito intensa, fez-lhe, de imediato, perder os sentidos. Se você observar direito, Tereza Cristina, verá como ele se parece com meu irmão Teófilo Pinheiro Noronha, não é mesmo?  Mas quem herdou, segundo minha mãe, o seu temperamento, foi meu outro irmão, Rubens Pinheiro Noronha.
Sabendo do temperamento de Binho, respondi à Neuma:
- Ao contrário, minha mãe dizia que se lembrava dele com carinho, exatamente por ser uma pessoa dócil. Bom, as pessoas reagem de formas diferentes, com relação a diferentes pessoas... Também, minha mãe era a mais nova e certamente só recebia dengos do finado tio Manoel. Ela lembrava também que a última vez que o viu foi numa rede, quando chegou da escola que frequentava em Laranjeiras. Ele tinha ido para lá passear com minha avó e até se empolgou com o lugar. Um tio paterno de nossas mães, mais abastado, o Sr. Tranquilino Lobão, se ofereceu para criá-lo, justificando que meus avós, tendo uma grande prole, seriam aliviados de uma parte das obrigações financeiras domésticas. Minha vó negou, naturalmente, e por essa razão, passou a se culpar, após o luto pelo acontecido, dizendo: "se eu tivesse dado meu filho a Tranquilino, ele ainda estaria vivo"... De tanto ouvir, com o coração partido, os compreensíveis lamentos de sua esposa, meu avô, que era muito religioso, veio em socorro, dizendo: "Ceça, nós o demos a Deus!" Essa fala eu ouvia dela própria. E o engraçado era que, ao contrário de minha mãe, ela não chorava...
Ana Márcia, minha  prima em segundo grau,  chamou-me a atenção, dizendo:
- Tereza Cristina, minha tia, Maria Pinheiro, como você sabe, filha de José, o filho mais velho de vovô Boanerges, ao contar essa história, sempre atribuía a surdez de vovó Cessa a esse incêndio.
E, de fato, vovó Cessa se recuperou das queimadoras, mas ficou surda como sequela.
Se pararmos para pensar nas tragédias da humanidade, essa é só uma dor de família. Mas, como tal, dói até em minha geração que não experenciou na pele a circunstância descrita acima.
A lição que fica é que precisamos aprender como existem tragédias anunciadas quando se resolve negligenciar orientações técnicas de segurança do trabalho, em qualquer setor que possui de alguma forma, um grau, por menor que seja, de periculosidade.


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