A Saga de um incêndio
Tereza Cristina Pinheiro Souza
Este é
meu tio Manoel. Irmão da minha mãe. E esta é sua única fotografia tirada pouco
tempo antes de falecer. Teve uma vida tão curta!...
Nasceu no ano de 1919 e veio a falecer com
quatorze anos de idade. Claro que não o conheci. Pelo menos, frente a frente.
Mas criei com ele intensos laços afetivos porque repetidas vezes ouvi minha mãe
contar uma história sobre a fatalidade que lhe roubou a vida.
Aos oito
anos de idade, minha mãe fora estudar na cidade de Laranjeiras, em regime de
internato na conceituada Escola Laranjeirense
que tinha como proprietária sua madrinha de batismo, a professora Zizinha
Guimarães. Por ser sua afilhada, foi contemplada com uma bolsa de estudos.
Recordo-me que ela se orgulhava dessa condição e era muito grata pela
oportunidade da educação a que teve acesso. Todavia, intimamente lamentava a
saudade que sentia de sua família. Pela dificuldade de locomoção da época,
voltava para casa apenas nas duas férias: no meio e no fim do ano letivo. Dizia
que para compensar a saudade, minha vó Cessa, sempre que podia, ia a
Laranjeiras. Lá residiam parentes abastados de vovô Boanerges. Em uma dessas
viagens, minha avó levou consigo tio Manuel, que era seis anos mais velho que
minha mãe. Portanto, ainda tinha idade para ingressar nos estudos mais
avançados que, no entanto, à época, Itabaiana não dispunha. Por ser um
adolescente no frescor da vida e demonstrar uma personalidade dócil, o “tio
Tranquilino Lobão” fez a sugestão para minha avó de criá-lo e educá-lo nos
mesmos moldes que criou seus filhos. Alegava que seria uma maneira de ajudar ao irmão
que sobrevivia junto a uma grande prole com uma fábrica de fogos. Mas minha avó
se negou a conceder essa adoção, justificando o afeto que nutria por todos os
seus filhos e argumentando que se não podia favorecer uma vida mais afortunada
compensava com os cuidados de mãe. Mal sabia que exatamente quinze dias depois
um acontecimento mais cruel o tiraria definitivamente de sua companhia.
Meu avô Boanerges teve uma vida difícil. Ainda
menino, perdera seu pai, Samuel Pereira de Almeida. Casou-se com vinte e um
anos de idade e criou dezesseis filhos, alternando sua fonte de renda entre a marcenaria
e a fogueteiria. Exatamente entre as décadas de 20 e 30 do século passado, nos
arredores de sua residência, funcionava uma fábrica de fogos que abastecia o
mercado local, o suficiente para atender aos festejos do padroeiro Santo
Antônio e às festas juninas.
Contava
minha mãe que o mau uso de dinamite para a produção de 'foguetes de vara’,
conjugado ao inapropriado consumo de cigarro por parte de trabalhadores, fez
acontecer uma tragédia que deixou vários feridos, incluindo tio Sizino que,
posteriormente, fora prefeito do município de Itabaiana, além de vitimar
fatalmente o menino de 14 anos de idade, seu filho, Manoel de Almeida Pinheiro.
Cresci
com minha mãe contando este episódio e chorando toda vez que o fazia apesar de ela ter apenas nove anos de
idade quando da tragédia. Isso me deu a sensação de tê-lo conhecido. Contava que meu avô Boanerges se maldizia diariamente
pela fábrica e, desmotivado do empreendimento, a partir de então, desistiu de confeccionar fogos de uma vez por todas. Quanto à minha avó, comunicativa
que era, ficou, no entanto, silenciosa por mais de um ano, reclusa em seu
quarto e coberta de roupa preta, simbolizando o luto do seu coração. Todavia, depois
dessa fase difícil, minha vó Cessa viveu por mais de 40 anos.
Recorrendo
às lembranças de minha prima Neuma, dela obtive este depoimento:
- Segundo
minha mãe, Cristina de Lafaiete Noronha,
que era também irmã do menino Manoel, vovó ficou muito queimada nessa
tragédia e por um bom tempo acamada em cima de folhas de bananeira. A minha mãe
chorava cada vez que tinha uma queimadura, por mais simples que fosse e sempre
dizia: "ai, meu Deus, como deve ter sofrido meu irmão!” Melhorou um pouco seu
sofrimento quando meu irmão que é médico anestesista, Guilhermino Pinheiro Noronha, esclareceu-lhe
que ele não sofreu muito pois a dor, por ter sido muito intensa, fez-lhe, de
imediato, perder os sentidos. Se você observar direito, Tereza Cristina, verá como ele
se parece com meu irmão Teófilo Pinheiro Noronha, não é mesmo? Mas quem herdou, segundo minha mãe, o seu
temperamento, foi meu outro irmão, Rubens Pinheiro Noronha.
Sabendo
do temperamento de Binho, respondi à Neuma:
- Ao
contrário, minha mãe dizia que se lembrava dele com carinho, exatamente por ser
uma pessoa dócil. Bom, as pessoas reagem de formas diferentes, com relação a
diferentes pessoas... Também, minha mãe era a mais nova e certamente só recebia
dengos do finado tio Manoel. Ela lembrava também que a última vez que o viu foi
numa rede, quando chegou da escola que frequentava em Laranjeiras. Ele tinha
ido para lá passear com minha avó e até se empolgou com o lugar. Um tio paterno
de nossas mães, mais abastado, o Sr. Tranquilino Lobão, se ofereceu para
criá-lo, justificando que meus avós, tendo uma grande prole, seriam aliviados de
uma parte das obrigações financeiras domésticas. Minha vó negou, naturalmente,
e por essa razão, passou a se culpar, após o luto pelo acontecido, dizendo: "se
eu tivesse dado meu filho a Tranquilino, ele ainda estaria vivo"... De tanto
ouvir, com o coração partido, os compreensíveis lamentos de sua esposa, meu avô,
que era muito religioso, veio em socorro, dizendo: "Ceça, nós o demos a Deus!" Essa fala eu ouvia dela própria. E o engraçado era que, ao contrário de minha
mãe, ela não chorava...
- Tereza Cristina, minha
tia, Maria Pinheiro, como você sabe, filha de José, o filho mais velho de vovô Boanerges,
ao contar essa história, sempre atribuía a surdez de vovó Cessa a esse incêndio.
E, de
fato, vovó Cessa se recuperou das queimadoras, mas ficou surda como sequela.
Se
pararmos para pensar nas tragédias da humanidade, essa é só uma dor de família.
Mas, como tal, dói até em minha geração que não experenciou na pele a circunstância
descrita acima.
A lição
que fica é que precisamos aprender como existem tragédias anunciadas quando se
resolve negligenciar orientações técnicas de segurança do trabalho, em qualquer
setor que possui de alguma forma, um grau, por menor que seja, de periculosidade.
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