sábado, 13 de março de 2021


 


Doces Lembranças

Tereza Cristina

 

Cresci muito próxima da casa dos meus avós maternos. Talvez pelo fato de eu ser filha da filha mais nova dos seus pais, alcancei a fase em que meus avós eram pais com açúcar. O amadurecimento decorrente suas experiências anteriores muitas vezes dolorosas, os tornaram dóceis e foi essa a imagem que minha memória afetiva guardou.

A lembrança que tenho é de uma família numerosa que convergia para a casa dos meus avós e que orgulhosamente me deu a ideia pertencimento. Com isso, aprendi a noção de coletivo logo cedo. Como diz o "Raul Seixas" - Um sonho que se sonha só é só um sonho. Um sonho que se sonha junto torna-se realidade. No entanto, “... é preciso amor pra poder vingar!” E amor teve de sobra!

 Desde cedo também aprendi com minha mãe valores eternos e imateriais pautados na afetividade. Nessa perspectiva, transitei em todos os núcleos da família recebendo a devida atenção de todos. Apesar das diferenças socioeconômicas percebia entre todos os irmãos da minha mãe uma aliança fraterna promovida pelos queridos velhinhos Boanerges e Cessa.

  Minha mãe pertencia ao núcleo dos menos abastados, porém, não se utilizou de lamentações para criar limites em nossa vida. Ao contrário, assimilou todas as possibilidades e com elas construiu a nossa família em cumplicidade com meu pai. Se para eles o caminho foi difícil em todos os sentidos, inclusive na questão de acolher de coração um filho especial, suas dificuldades foram motivo de perceber as oportunidades para o crescimento espiritual.

Papai, hoje único genro vivo do casal Boanerges e Cessa, nasceu em Ribeirópolis e casando com minha mãe, mudou-se para Itabaiana sendo recebido pela família com carinho. Sempre se mostra grato por isso. É recorrente vê-lo elogiar a família da minha mãe. Vez por outra, fala das ajudas recebidas.

A imagem por mim guardada de todos da família tem o caráter da boa convivência. Sempre contando com a acolhida, posso realçar alguns episódios mais marcantes.

 Como em toda família numerosa, os filhos mais velhos sempre adotam um irmão para tomar conta e dessa forma ajudar à mãe de prole enorme. Na casa de vovó Cessa não seria diferente.  Minha mãe era carinhosamente cuidada por “Quenha” (nome carinhoso dado por minha mãe à Tia Mariquinha).  Ela se fez presente nos três partos de minha mãe. Seu esposo, tio Vieira, que apesar de não ter entregado dinheiro em espécie ao meu pai, disponibilizou os créditos necessários para que servisse de capital de giro sendo seu avalista e facilitando assim a iniciação de seu comércio ambulante que serviu para nossa sobrevivência.

Sobre esse apoio recebido, vale lembrar a presença de tio Sizino. Meu pai enfatiza as suas orientações no uso das finanças, em como proceder na compra e pagamento de mercadorias, além de ter através dele adquirido um ponto de venda na pedra das feiras livres de Itabaiana e em Malhador.

De tio Samuel e tia Carmem, recebeu ajuda na acolhida em Salvador para completar o tratamento ortopédico de meu irmão Jorge Luiz sem o qual teria ficado com uma deficiência física bem visível.

 

 Tia Dona, esposa de tio Pedro, deixou-me a imagem de uma esposa amorosa. Quantas vezes ela chegou a minha casa na volta de uma visita ao túmulo de tio Pedro lamentando sua morte e falando: "Maria, minha filha, só sabe quem perde". Nestas únicas palavras por ela dita tamanha era a sua intensidade afetiva e verdade que chegava a tirar lágrimas dos olhos de minha mãe. Na minha infância, morando próximo de sua casa e estudando banca na Escola de Maria de Zizi que ficava também perto, minha mãe que era tão cuidadosa confiava a ela minha guarda enquanto chegava do trabalho. (Na época, inspetores de alunos do Murilo Braga.) Guardo na minha lembrança aquela bordadeira que ela era sentada em sua máquina de costura ouvindo na rádio Cultura o locutor Irandi Santos no seu programa "Ao cair da tarde". O repertório do cancioneiro popular da velha guarda soava bem nos meus ouvidos me fazendo fã das vozes do Nelson Gonçalves, Altemar Dultra, Calby Peixoto, e outros que em lindas canções me deram inspiração de sonhos já naquela época! Debruçada na janela de sua casa tendo por base um encerado dobrado que servia para cobrir cargas de caminhão, eu ficava olhando a rua na espera da chegada de minha mãe que no intervalo entre o término da minha aula era o tempo suficiente para os meus devaneios! Tio Pedro era caminhoneiro, um dos pioneiros da cidade neste ramo. Conseguiu se aposentar sem que tivesse um acidente. Isso era contado por minha mãe que sempre acrescentava um “graças à Deus!”. Era um homem com senso de humor. Falava que certa vez dirigindo ao lado de alguém que lhe apontara uma poça, ele respondeu: Qual? Já passou? “Bom, a que está na minha frente eu estou vendo.”

De tia Lindaura que era a irmã mais velha da minha mãe, ficou a imagem de uma mulher de fibra que aceitou sua missão. Tinha um semblante de quem passou por muitas dificuldades e se sustentou no afeto dos pais que a tiveram sempre como vizinha. Por ter sido a 'filha' mais velha experenciou mais que todos,  as alegrias e as dores de sua família. Havia um quê de melancolia no seu semblante que era rompido esporadicamente quando expressava seu lado humorístico. Lembro-me dela sentada numa cadeira mais baixa que as normais tecendo renda e manuseado os birros que eu tão curiosamente tentava entender como daqueles movimentos saíam rendas tão mimosas! Acho que foi com ela que aprendi a gostar do cheiro de café. Todas as tardes, na minha primeira infância, minha mãe me deixava na casa de minha vó Cessa e por isso interagi com mais frequência com ela. Guardo seu olhar triste muitas vezes só por ver Dudu. Era uma pessoa sensível, sofrida e que eu soube amar.

Sobre tia Helena, há em mim a influência do gosto pela estética no vestir. Por essa época, exatamente na primeira semana que antecede o 8 de Dezembro, quando se comemora a festa de Nossa Senhora da Conceição, co-padroeira de Itabaiana, minhas recordações alcançam o prazer de vestir uma roupa nova feita no capricho por tia Helena. Lembro-me que muitas vezes ela tinha a iniciativa de incentivar meu pai a entregá-la cortes de panos que ele mesmo vendia argumentando para convencê-lo no alcance de seu objetivo que além de não precisar comprar os tecidos ele deixasse de somiticaria porque só tinha uma filha. Em tom de brincadeira ela o convencia e ele atendia aos seus apelos. Os vestidos de fotos que marcaram minha infância e também o que usei no meu aniversário de 15anos foram criações dela.

De tia Cistina, irmã da minha mãe mais próxima em idade, a eterna gratidão pela festa dos meus quinze anos. Eu alimentava um sonho de ter uma festa de aniversário com a mesma condição das festas para as quais tia Cristina fornecia o bolo, doces e salgados. Na época, meus pais estavam ainda passando as consequências deixadas pelos nascimentos dos meus irmãos que debilitou a saúde de minha mãe. No entanto, foi através do empenho de tia Cristina que consegui minha festa tão sonhada.

De tio Antônio e tia Adélia, uma lembrança do acolhimento afetuoso em tardes frescas no quintal de sua casa, contando com colo e beijos, banhos e cuidados especiais. Lembro-me das vezes que nos visitaram depois que mudaram para São Vicente, São Paulo.

De tio Euzébio e tia Camélia, lembranças de minha infância dos passeios no automóvel preto, modelo dos vistos nos filmes de Chaplin. Da voz de tia Camélia que vinha de sua casa pelo fio do aparelho preto e pesado do telefone que ficava no birô da Sapataria Pinheiro. Do acolhimento que tive para iniciar os estudos na UFS.

De Tio João, dizia minha mãe que ele era casado cum uma moça que chamava de Tide. Certamente que era apelido. Mostrando-me uma foto dele muito jovem contava minha mãe que ele querendo se divertir no carnaval de Aracaju, vestiu um terno branco de linho belga. Voltou frustrado porque fora atingido nos olhos por um jato de lança perfume e teve que usar uns óculos escuros comprometendo assim sua visão dos blocos que lá desfilavam. Com tristeza lembrava-se de um episódio que aconteceu poucos dias antes de sua morte. Estava acometido de uma grave moléstia: pneumonia aguda nos ossos o que lhe causava cansaço e muitas dores. Em um sábado bem no meio do dia, deitado em uma rede no alpendre da casa de vovó Cessa fora surpreendido com uma fala de indignação de uma moradora da zona rural de Itabaiana que lá costumava se arranchar aos sábados. – João, você deitado uma hora dessas, está doente? E o meu tio respondeu prontamente: - Nada! Só estou tomando uma fresca. Tia Helena que tudo escutou deixou a mulher sair e repreendeu tio João dizendo: - Mas João por que você disse a ela que não estava doente? E ele respondeu: Deus me livre! Pra que? Ela ia dizer: - ‘Coitchado’, vai morrer! E de fato dias após ele faleceu.  Minha mãe sempre que contava esse episódio era motivo de lágrimas e risos.

“Mé pé!” A primeira vez que ouvi esse termo da boca de minha mãe entendi que era sinônimo de carinho. Era assim que chamava tio José seu irmão mais velho que a levou para o altar. Minha memória afetiva guarda a figura daquele homem alto de óculos redondinho com lentes cristalinas e armação fininha que facilitava a minha percepção de sua fisionomia. Minha mãe tinha seus traços fisionômicos. Quando ele faleceu eu tinha apenas 8 anos de idade. Era esposo de Tia Luizinha cunhada que minha mãe aprendeu a amar. Sua filha mais velha tinha apenas cinco anos a menos que minha mãe, fator de amizade entre as duas com efeito de aproximação entre mim e Ana Márcia.

Finalmente a doce lembrança de tia Zefinha. Uma pessoa que tinha um fino trato e gosto apurado. Sempre se destacou pela cútis e pernas torneadas. Na minha infância meus pais costumavam passar o ano novo em Aracaju e se hospedavam na casa dela.  Já os Natais, ela vinha passar com meus avós e sempre fazia uma refeição conosco. Associei a presença de tia Zefinha aos presentes recebidos do papai Noel. Era casada e não teve filhos. Dedicou sua vida inteira a cuidar de tio Samuel e depois de toda sua família. Minha lembrança consta de sua viuvez.  Tive o prazer de compartilhar o cotidiano em sua residência por mais de dois anos quando estudante universitária. Ouvia histórias a respeito de suas viagens de seus amigos e de sua vida enquanto solteira. Eram lembranças de alguém que soube aproveitar a vida de forma sadia tendo como parâmetro o afeto, a estética e a educação esmerada.

Tais lembranças me fazem orgulhosa de pertencer a esta família que teve seu sustentáculo no casal Boanerges e Cessa. Ter meu avô como referência de sensibilidade. E saber que o elo forte teve como base a verdadeira formação de família onde a matriarca me ensinou que a mulher é a cumeeira da casa não só com palavras mas, principalmente com atitudes por toda sua vida.